As bibliotecas da Antiguidade

Desde muito cedo o homem produz conhecimento e armazena informação registrada, seja em cavernas, pedras, tabuletas de argila, pele animal, papel ou em um disco rígido. Para o controle e recuperação dessa crescente quantidade de registros, foram desenvolvidos sistemas de organização rudimentares e tão antigos quanto.

As bibliotecas da Antiguidade foram as pioneiras na busca por melhores técnicas de gestão documental, no caso, aplicadas às tabuletas de argila. Calímaco de Cirene (310 a.C-235 a.C), chegou a trabalhar na biblioteca de Alexandria e organizou o Pinakes, primeiro instrumento de organização bibliográfica conhecido, sendo dividido por assunto. Os autores, por sua vez, eram organizados por ordem alfabética e possuíam análises e notas sobre seus trabalhos. O Pinakes serviu de modelo para os catálogos futuros.

Os primeiros livros surgiram na antiga Mesopotâmia (atual Iraque) há cerca de 5300 anos atrás. Assim como os reis sumérios, os reis assírios e babilônios possuíam acervos constituídos de placas de argila com inscrições cuneiformes. Indo de acordo com Luiz Milanesi, “o conjunto dessas placas de argila pode ser entendido como uma biblioteca”¹. Graças às pesquisas arqueológicas conseguimos recuperar verdadeiros acervos da Antiguidade. Em 1924, várias tabuletas de argila datadas entre 4100 a.C e 3100 a.C foram encontradas na quarta camada do templo da deusa Ishtar, em Uruk, Mesopotâmia. Ainda na Suméria, mais precisamente em Ur e Adab, foram encontrados fragmentos de tabuletas de argila datados aproximadamente de 2800 a.C.

Pudemos resgatar grandes acervos da Antiguidade, sejam eles propriedade de reis ou de bibliotecas. Nesse período, as maiores e mais importantes eram Alexandria e  Pérgamo.

A biblioteca de Alexandria é considerada a maior, mais famosa e influente do mundo antigo. Um fato interessante é que ela era uma simples sala de leitura que depois foi ampliada. Fundada durante o reinado de Ptolomeu Soter (366 a.C – 283 a.C), possuía incríveis 700 mil volumes distribuídos em dois bairros: Bruchium, museu que abrigava 400 mil volumes, e Serápio, destino das aquisições mais recentes que formaram uma biblioteca complementar de 300 mil volumes. Vale lembrar que o Serapeum, templo que abrigava a biblioteca de mesmo nome, foi fundado por Ptolomeu III segundo pesquisas arqueológicas de 1945.

library-of-alexandria2
Uma das projeções da biblioteca de Alexandria

Demétrio de Falero foi o responsável por convencer Ptolomeu Soter a construir um museu que abrigaria a futura unidade da biblioteca Alexandria no bairro de Bruchium. Demétrio tinha como objetivo “adquirir todos os livros do mundo” e sempre estava disposto a aumentar o acervo da grande biblioteca. Para isso, os Ptolomeus dispunham de um verdadeiro batalhão de copistas que trabalhavam de forma incansável. Isso alavancou o uso do papiro já que muitos textos eram copiados e devolvidos aos donos. Obras de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, propriedade de Atenas, eram copiadas e devolvidas, e os textos originais permaneciam em Alexandria. Inclusive é nesta cidade que foi realizada uma tradução histórica dos livros sagrados hebreus, a chamada “versão dos Setenta”.

A biblioteca de Alexandria não era, como alguns podem pensar, um simples depósito de livros. Entretanto o acesso era restrito a um grupo de privilegiados, isto é, os leitores, uma vez que poucas pessoas sabiam ler, como os camponeses. O bibliotecário surge como o responsável pela organização e pelo funcionamento da biblioteca. Os bibliotecários, muitas vezes, eram gramáticos, historiadores, escritores, críticos literários, enfim, eram verdadeiros sábios.

Infelizmente a maior biblioteca do mundo antigo foi alvo de quatro incêndios, sendo três intencionais e um acidental. O primeiro, acidental, aconteceu em 48 a.C em decorrência de um ato de Júlio César que queria defender-se do exército egípcio. O segundo foi causado, em 272 d.C, pelo imperador Aureliano e devastou o bairro de Bruchium. O terceiro, em 392 d.C, foi culpa do imperador Teodósio e do patriarca de Alexandria, Teófilo. O quarto e definitivo é datado de 642 d.C e é atribuído ao general Amr Ibn Al As, responsável pelo cerco que deu fim à uma das mais monumentais bibliotecas que o homem teve o privilégio de conhecer.

À sombra da grandiosidade da biblioteca de Alexandria estava a biblioteca de Pérgamo, localizada na região da Mísia, atual Turquia. Pérgamo foi fundada no século II a.C e contava com um acervo de 200 ml volumes em pergaminho. Foi a segunda maior biblioteca do mundo antigo. Ela foi construída com o objetivo de competir com Alexandria. Para isso, Eumênio II, seu fundador, investiu na aquisição de livros e também na produção de pergaminho, resultado da negativa de Ptolomeu V de exportar mais papiro, afetando a produção de Pérgamo.

Em 41 a.C Marco Antônio saqueou todo o acervo da biblioteca para dar-lhe a Cleópatra. Este acervo passaria a integrar a sua rival, a biblioteca de Alexandria, e marcaria o fim da segunda maior da Antiguidade.

Além dessas duas importantes bibliotecas, a Antiguidade também nos proporcionou outras incríveis e muito mais antigas. Por exemplo, já haviam bibliotecas mesopotâmicas, mais precisamente em Ur, Nippur e Isin, entre 2000 a.C e 1000 a.C. Segundo Fernando Báez, existiam dezenas de bibliotecas nessa faixa. Báez completa: “[…] as primeiras bibliotecas do mundo estão em ruínas e mais da metade de seus livros foi destruída”².

Em 1975 foi encontrada uma das primeiras bibliotecas da Antiguidade, a biblioteca de Ebla, na Síria. Datada do terceiro milênio a.C, continha 15 mil tabuletas de argila, algumas com 30 cm de comprimento, que traziam textos administrativos extremamente precisos, tratados históricos, comunicados oficiais, listas de cidades conquistadas, disposições legais, além de textos literários e científicos organizados de acordo com o tema nas estantes de madeira. Os primeiros dicionários bilíngues (sumério-eblaense) surgem em Ebla como resultado dos estudos filológicos ali realizados por volta de 2500 a.C. As escavações ainda revelaram uma sala adjacente onde eram feitos os documentos.

hmarchivocug
Informativo da sala de arquivos localizada no palácio de Ebla

Essa biblioteca, assim como Alexandria, foi alvo de incêndios e seu acervo tornou-se um amontoado de fragmentos, únicos remanescentes após o fogo e os saques. Esse ataque é geralmente atribuído ao rei acadiano Naramsin (2254 a.C-2218 a.C), porém há outros autores que apontam o rei Sargão como o responsável.

A cidade da Babilônia, no Iraque, merece algumas considerações. O rei Hamurabi possuía uma biblioteca onde guardava as leis, textos de matemática, astronomia, história e também literatura. Um detalhe é que muitas tabuletas continham advertências destinadas aos usuários mais descuidados. Os primeiros manuais da língua suméria surgiram durante o reinado de Hamurabi. Além da biblioteca real, foram encontrados restos de outras duas: Shaduppum e Sippar. Esta última foi achada em 1987 junto com oitenta tabuletas divididas pelos pesquisadores em administrativas, literárias, religiosas e matemáticas em idiomas acadianos e sumérios.

Nabucodonosor I (1124 a.C-1103 a.C) contribuiu para que as bibliotecas funcionassem de forma ativa. Ele mandou preservar os textos populares e literários como por exemplo uma versão completa do Poema de Gilgamesh composta por 12 volumes.

Assurbanipal, neto de Senaquerib, foi o rei assírio entre 668 a.C e 627 a.C. Também é conhecido como “o primeiro grande colecionador de livros do mundo antigo”. Ele se orgulhava de seu amor pelos livros e pela cultura:

[…] O melhor da arte do escriba, que nenhum de meus antecessores conseguiu; a sabedoria de Nabu, os signos da escrita, todos os que foram inventados, escrevi-os em tabletas, ordenei-os em série, colecionei-os e os coloquei em meu palácio para minha real contemplação e leitura […].³

Seu palácio em Nínive abrigava uma grandiosa biblioteca, descoberta em 1854 por arqueólogos ingleses. Os pesquisadores encontraram 20.720 tabuletas que traziam mapas, textos de magia, astrologia, história, catálogos de plantas e de animais. Todas foram recolhidas ao Museu Britânico. As escavações continuaram e hoje o número de tabuletas encontradas nessa região chega a 30 mil.

6a00d8346524f769e200e54f41ed888833-800wi
Entrada da biblioteca de Nínive

Tempos depois foram encontrados os restos do palácio de Assurbanipal II e os pesquisadores ingleses se surpreenderam ao encontrar livros assírios com as páginas unidas por dobradiças. Nínive e suas bibliotecas foram destruídas pelos babilônios e medos até o ano de 612 a.C. O palácio ainda foi alvo de ladrões que procuravam por ouro e prata.

Saindo da Mesopotâmia e indo em direção a Grécia, vemos o nascimento das primeiras bibliotecas de caráter público. A primeira biblioteca grega foi fundada por Pisístrato (560-527 a.C) e tinha como objetivo ser de livre acesso. Entretanto o primeiro a ter a ideia de instalar uma biblioteca pública foi Júlio César, mas foi morto antes que pudesse colocar tal ideia em prática.

Roma investiu na construção de bibliotecas porque queria que elas competissem com Alexandria. No século IV, havia 28 bibliotecas com aproximadamente 20.000 rolos cada. Destaque para as bibliotecas Ulpiana, fundada por Trajano, e Palatina. Essas duas já possuíam um sistema de empréstimo. Apesar disso, ainda há muita discussão sobre qual foi, de fato, a primeira biblioteca pública. Contudo este texto não tem como objetivo analisar os argumentos de diferentes autores, mas sim expor um pouco da história das bibliotecas antigas.

Finalmente, iremos falar um pouco sobre a organização das bibliotecas antigas, sobretudo as que armazenavam rolos ao invés de tabuletas. Muitas possuíam armários de marfim numerados e às vezes ornamentados com o busto da entidade que presidia aquela área do conhecimento. Além disso eram fechados por vidros, sendo possível ver as obras pelo lado de fora. Os rolos eram organizados de forma a aproveitar o espaço, ou seja, lado a lado mas não amontoados e sem divisões. O umbilicus, peça de madeira que permitia a abertura dos rolos, ficava sempre à mostra.

alexandria1

As bibliotecas da Antiguidade, infelizmente, não resistiram aos constantes ataques biblioclastas, sejam eles por motivos religiosos ou por sobreposição de cultura. Perdemos quase todo o conhecimento antigo registrado e hoje nos desdobramos para manter o que temos. A título de curiosidade, estima-se que 75% de toda a literatura, filosofia e ciência grega antiga se perdeu.

Contudo temos que dar prosseguimento às pesquisas a fim de aumentarmos o nosso conhecimento sobre o maravilhoso e pioneiro mundo antigo. A ação do homem e do tempo aceleraram o processo de destruição, mas ainda temos muito a descobrir, recuperar e preservar.

Notas

  1. MILANESI, 1985, p. 17.
  2. BÁEZ, 2004, p. 34.
  3. BÁEZ, 2004, p. 38.

Referências

BÁEZ, Fernando. História universal da destruição de livros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

CAMPELLO, Bernadete. Introdução ao controle bibliográfico. 2 ed. Brasília: DF: Briquet de Lemos, 2006.

MARTINS, Wilson. A palavra escrita. 2 ed. São Paulo: Ática, 1996.

MILANESI, Luiz. O que é biblioteca. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ORTEGA, Cristina Dotta. Relações históricas entre Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação. DataGramaZero, v.5, n.5, 2004. Disponível em: <http://www.dgz.org.br/out04/Art_03.htm&gt;. Acesso em: 4 mar. 2016.

THIESEN, Icléia. Museus, arquivos e bibliotecas: entre lugares de memória e espaços de produção do conhecimento. In: MUSEU DE ASTRONOMIA E CIÊNCIAS AFINS. Museu e museologia: interfaces e perspectivas. Rio de Janeiro: MAST, 2009. p. 61-82. Disponível em: <http://www.mast.br/publicacoes_museologia/mastcolloquia11.pdf&gt;. Acesso em: 4 mar. 2016.

4 comentários sobre “As bibliotecas da Antiguidade

  1. Pingback: As bibliotecas da Idade Média – Frontispício

  2. Pingback: O bibliotecário – Frontispício

  3. Pingback: Biblioclastia ou a destruição de livros: Antiguidade (parte 1) – Frontispício

  4. Pingback: Curiosidades – Mendes & Masseli

Deixe um comentário