A Bíblia do Diabo

O Codex Gigas (livro gigante), mais conhecido como a Bíblia do Diabo, é o maior manuscrito medieval que existe. Porém ele não é conhecido somente pelo seu enorme volume, sendo famoso também por conter uma grande e chamativa ilustração do Diabo e por seus muitos mistérios envolvendo o próprio Diabo, uma maldição e um pacto.

A Bíblia do Diabo é um livro datado do início do século XIII e proveniente da Boêmia, atual República Tcheca. Entretanto sua origem exata continua desconhecida. Há uma anotação na primeira folha dizendo que ele foi penhorado por seus donos, os monges de Podlazice, no monastério em Sedlec em 1295 devido a sérias dificuldades financeiras. Todos esses monastérios são da região da Boêmia, sugerindo que o Codex foi feito em algum ponto dessa localidade.

Sua autoria também é desconhecida. Uma das únicas certezas que os pesquisadores têm a respeito da Bíblia do Diabo é a de que todo o texto, incluindo correções, foi trabalho de somente um escriba. A uniformidade da escrita evidencia essa afirmativa. Uma anotação no fim do livro diz “Hermanus monachus inclusus”, ou “Herman, o monge recluso”, indicando o nome de seu prossível autor. Um outro nome cogitado é Sobislauss, que aparece em uma oração à Virgem Maria adicionada ao livro por uma outra mão, já no século XIII.

Possui atualmente 49 cm de largura, 89 cm de altura e pesa cerca de 74 kg, sendo necessárias duas pessoas para erguê-lo. Foram utilizadas cerca de 160 peles de animais para a feitura do livro. As capas são de madeira revestidas de peles coloridas de branco e protegidas por cantoneiras¹ e calombos².

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As incríveis dimensões da Bíblia do Diabo
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A singela capa do códex

Quanto ao seu conteúdo, foi escrito em latim e, segundo a lenda, deveria abarcar “todo o conhecimento humano”. Sendo isso verdade ou não, o Codex Gigas é bem variado, uma verdadeira enciclopédia do período medieval. Contém o Velho e o Novo Testamento, que ocupam metade do códice, duas obras (The Antiquities of the Jews e History of the Jewish War) de Josephus Flavius, historiador e hagiógrafo do primeiro século d.C., e o Ars medicinae (A arte da medicina), livro padrão para o ensino da medicina na Idade Média. Também podemos encontrar a Chronica Boëmorum (Crônica dos Boêmios), escrita pelo padre Cosmas de Praga por volta do século XII, Etymologieso (Etimologias) de Isidoro de Sevilha, considerado o “último pai do latim oriental”, sendo este trabalho a primeira enciclopédia feita por um cristão a usar o modelo clássico do latim e, por fim, um calendário.

O Codex Gigas realmente é um livro monumental e intrigante. Como vimos, suas dimensões são totalmente fora do padrão e isso provoca fascínio e gera perguntas entre os pesquisadores até hoje. Sabemos que um monge escreveu todo o livro, mas não se sabe quem o fez e quanto tempo levou. Segundo a lenda, ele foi escrito pelo próprio Diabo em somente uma noite.

A lenda, de origem desconhecida, conta que um monge da Idade Média seria severamente punido por quebrar seus votos monásticos. Buscando evitar o castigo, prometeu escrever um livro contendo todo o conhecimento humano em uma noite. À meia-noite o monge, sem saída, ofereceu sua alma a Lúcifer em troca de ajuda para completar o livro. Lúcifer aceita e assina o manuscrito com seu retrato, localizado na página 290. A história também diz que a mão do escriba foi guiada pelo demônio.

Curiosamente podemos encontrar, nas páginas que sucedem a imagem do demônio, instruções detalhadas para o exorcismo em pessoas e objetos. Também há dois feitiços, ambos específicos para apanhar um ladrão.

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Detalhe da imagem do Diabo na página 290, a mais consultada do manuscrito.

Como dito anteriormente, só uma pessoa trabalhou no livro, segundo o paleógrafo Michael Gullick na Biblioteca Nacional da Suécia. Porém o Codex Gigas não foi escrito em uma noite como diz a lenda. Um escriba medieval escrevia cerca de 100 linhas por dia. É verdade que não se sabe quantas horas o escriba trabalhou no códice. Contudo, se esse monge escreveu, por exemplo, uma coluna por dia, seu trabalho estaria concluído em cinco anos. Provavelmente esse mesmo monge também decorou o manuscrito, o que aumentaria o tempo de trabalho para dez ou vinte anos, no mínimo.

Entre incêndios, invasões e misteriosas subtrações de páginas, o grande livro sobreviveu. No século XV a eclosão da Guerra Hussita (1420-1434) fez com que seus atuais donos, os monges de Břevnov (República Tcheca), fugissem para a comunidade de Broumov. No século XVI vários religiosos de Praga e da vizinha Silesia assinaram seus nomes no livro enquanto visitaram o monastério de Broumov. O manuscrito chamou a atenção de Rodolfo II (1576-1612), rei da Boêmia e do Sacro Império Romano, que queria a Bíblia do Diabo emprestada. Ele era um dos maiores bibliófilos de seu tempo e seu gosto pelo ocultismo era conhecido. Mas o livro ainda era propriedade do monastério de Břevnov e uma das entradas no códex registrava que um possível empréstimo deveria ter a permissão do abade Martinus II Korytko de Pravdovic (1575-1602). Atendendo ao pedido do rei, o superior do monastério, Albertus Wnesconius, autorizou a transferência.

O manuscrito foi despachado para Praga em 4 de março de 1594. Uma vez lá, foi muito utilizado. É verdade também que nunca retornou a Břevnov, assim como, aparentemente, outros itens monásticos que o rei Rodolfo II tomou emprestado e nunca devolveu.

No século XVII, o Codex Gigas esteve presente em vários catálogos da Câmara de Tesouros e Arte do rei Rodolfo II, e na maioria das vezes com referências à lenda da sua criação. Por exemplo, consta em um registro de 1635 que o Diabo ajudou na aquisição do pergaminho e dos materiais de escrita para um monge aprisionado.

Em 1649 o livro chegou em Estocolmo juntamente com outros manuscritos obtidos em Praga durante a Guerra dos Trinta Anos. Contudo, ele não conquistou o interesse da rainha Cristina da Suécia que abdicou do trono e levou seus manuscritos para Roma. A Bíblia do Diabo, então, permaneceu no castelo. Em 1697, esse mesmo castelo pegou fogo e o grande códex foi salvo porque foi atirado de uma janela, ferindo uma pessoa que estava perto. Provavelmente isso não passa de uma história fantasiosa, mas o livro realmente ficou bastante danificado.

O Codex Gigas permaneceu no castelo até 1877, quando entrou para o acervo da Biblioteca Nacional da Suécia, e onde permanece até hoje. Encontra-se completamente digitalizado no site da biblioteca nacional sueca. Ao contrário do manuscrito original que não está mais exposto.

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A digitalização do Codex Gigas

Notas

1. Peças de metal que servem para proteger os cantos do livro.

2. Espécies de calombos feito de metal ou pedras incrustadas que erguem o livro um pouco acima da superfície a fim de evitar a umidade.

Referências

BIBLIOTECA DIGITAL MUNDIAL. Bíblia do Diabo. Disponível em: <https://www.wdl.org/pt/item/3042/>. Acesso em: 25 fev. 2016.

BIBLIOTECA NACIONAL DA SUÉCIA. About the Codex Gigas. <http://www.kb.se/codex-gigas/eng/short/>. Acesso em: 24 fev. 2016.

______. About the Content. Disponível em: <http://www.kb.se/codex-gigas/eng/Long/texter/>. Acesso em: 24 fev 2016.

______. Description of the MS. Disponível em: <http://www.kb.se/codex-gigas/eng/Long/description/>. Acesso em: 24 fev 2016.

______. Script. Disponível em: <http://www.kb.se/codex-gigas/eng/Long/description/script/>. Acesso em: 24 fev 2016.

______. The history of Codex Gigas. Disponível em: <http://www.kb.se/codex-gigas/eng/Long/handskriftens/>. Acesso em: 24 fev 2016.

BRAUN, David Maxwell. Devil’s Bible Darkest Secrets Explained. Disponível em: <http://voices.nationalgeographic.com/2008/12/17/devil_bible/>. Acesso em: 25 fev. 2016.

ZOLFAGHARIFARD, Ellie. The mystery of the ‘Devil’s Bible’. Daily Mail Online, United Kingdom, 11 mai. 2015. Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-3077265/The-mystery-Devil-s-Bible-World-s-largest-manuscript-required-one-person-write-non-stop-FIVE-YEARS.html>. Acesso em: 24 fev. 2016.

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