As bibliotecas da Idade Média

Como visto anteriormente, as bibliotecas antigas tinham como objetivo acumular conhecimento e não eram de livre acesso. A Idade Média não apresentou muitas diferenças, já que as bibliotecas desse período operavam de forma idêntica as da Antiguidade. Ambas queriam guardar e esconder os livros, não estavam à disposição dos profanos e consideravam o livro como algo sagrado, cercado de segredos e mistérios proibidos.

Na Idade Média os conventos administravam a maior parte das bibliotecas. Estes, por sua vez, estavam subordinados à Igreja Católica, principal detentora do conhecimento na época. Curiosamente ela era também a difusora da palavra escrita, mesmo sabendo que a maioria da população era analfabeta. É verdade também que a instituição incentivou a aproximação com o escrito, organizando pregações, cantos e a iconografia, todas baseadas em textos. Segundo Giulia Crippa a Igreja impunha a leitura das Escrituras nas residências em determinados horários. Para tal medida, ela deveria fornecer o acesso ao livro. Parece que entre os séculos II e III um rolo padrão não era muito caro.

Indo em direção contrária, os mosteiros abrigavam bibliotecas inacessíveis e muito restritas. O simples fato de se encontrarem dentro dos mosteiros já indica que elas não estavam à disposição dos profanos. As bibliotecas estavam preocupadas em guardar seus livros, considerados verdadeiros tesouros. Somado a isso, o conhecimento escrito migrou para os conventos e mosteiros. Como resultado estes assumiram, definitivamente, a função de biblioteca na Idade Média.

A própria arquitetura indica que essas instituições funcionavam como uma biblioteca. Havia estantes das mais variadas formas que permitiam um melhor manuseio dos pesados códices. As estantes portáteis, por exemplo, tinham livros acorrentados a elas. As paredes dos mosteiros continham estantes embutidas que guardavam livros e objetos de uso doméstico.

A rotina dentro das bibliotecas monásticas era calma e silenciosa, sendo a leitura uma das tarefas dos monges. Os beneditinos, a ordem que mais se dedicou ao livro, se restringiam aos textos litúrgicos e o capítulo 38 da sua Regra diz: “às mesas dos irmãos não deve faltar a leitura […]” e “[…] faça-se o máximo de silêncio, de modo que não se ouça nenhum cochicho ou voz, a não ser a do que está lendo”. Entretanto havia monges que eram analfabetos, ou que só sabiam escrever e não ler, e isso pode ser um sinal, segundo Crippa, de que os mosteiros beneditinos possuíam poucos livros, exclusivamente religiosos, no século VI.

É importante reforçar que a leitura dos monges, não somente os beneditinos, estava concentrada na Bíblia e textos sagrados, de modo que a leitura de obras de gramática, por exemplo, era proibida. Como estamos falando da Idade Média, “gramática” significa “latim”. Eles também liam obras pagãs, claro, mas para tentar refutá-las.

Uma outra tarefa dos monges era a cópia de manuscritos, sejam obras sagradas ou pagãs. Os monges bizantinos se destacaram, justamente, por terem uma maior preocupação com os textos clássicos e por também trazê-los ao Ocidente,  durante a tomada de Constantinopla em 1453 pelos turcos, contribuindo enormemente para a preservação e o resgate das escassas obras da Antiguidade. A escrita era um trabalho muito importante dentro dos mosteiros, sendo realizada nos scriptorias. Svend Dahl, citado por Wilson Martins, diz que os monges não reproduziam as obras pagãs porque se interessavam, mas sim porque queriam obter maiores conhecimentos no latim, necessário nos estudos eclesiásticos. Carlos Magno (743-814) tinha uma ótima relação com a Igreja e foi um grande entusiasta das artes e da educação. Por isso não admitia erros nos Salmos e empregava somente homens adultos. Em Vivarium, comunidade monástica fundada por Cassiodoro (485-580)  no século VI, os escribas, às vezes, cometiam erros que afetavam o entendimento e então era preciso uma Decora Correctio para fazer as correções, mas de modo que a escrita do revisor não se confundisse com a original.¹

As bibliotecas monacais também vendiam livros e realizavam empréstimos, mesmo que somente para religiosos e pessoal autorizado. Por exemplo, a Regra beneditina estipulava o início da Quaresma e o fim do ano como prazo de empréstimo de livros aos monges. Parece que a fiscalização era rigorosa e os empréstimos não eram tão abundantes, a fim de evitar o extravio dos manuscritos. Algumas bibliotecas, para dificultar o acesso e também para proteger as obras da umidade e pragas, tinham a forma de labirintos que eram bem ventilados, de forma a preservar o acervo. Vale lembrar que só os mosteiros e a elite possuíam livros, e uma coleção, em média, era formada por duzentos ou trezentos volumes.

A organização de livros nas bibliotecas monásticas era feita horizontalmente, ou seja, os volumes eram guardados deitados. Somente no Renascimento as obras passaram a ser armazenadas verticalmente. Havia bibliotecas que mantinham seus pesados exemplares acorrentados às estantes, que ficavam perto das mesas de estudo para que o monge não tivesse que se deslocar muito com o manuscrito, além de ser uma medida de segurança contra possíveis roubos. Existia também as bancadas com livros acorrentados, onde os monges podiam sentar e estudar.  Em resumo, os livros estavam mais propensos ao uso interno do que ao externo.  

16th-century chained library of Zutphen, in the east of the Netherlands. It is one of three such libraries still in existence in Europe.
Biblioteca de Zutphen, século XVI, Holanda. Uma das três bibliotecas com livros acorrentados que ainda existem na Europa.

O responsável pela biblioteca era o librorum ou bibliothecarius, que detinha a posse da chave. Contudo esse profissional só passou a ter destaque no começo do Renascimento, já que seu serviço na Idade Média estava muito mais voltado para o depósito do que para o acesso, como visto nos conventos e mosteiros. Nas universidades “[…] se guardavam os livros necessários à prática do ensino […] como se guardariam os utensílios de limpeza.” ²

Algumas bibliotecas monacais que merecem destaque: a de Montes Atos, na Turquia, a de Cassiodoro, em Vivarium, Saint-Gall, na Suíça, Fulda, na Prússia, Fleurysur-Loire, Cluny e Corbie, na França, as de São João e São Paulo, em Veneza e a mais importante, a Biblioteca do Vaticano, fundada em 1450 pelo então papa Nicolau V.

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Biblioteca Apostólica Vaticana

Ainda havia, além das monacais, as bibliotecas capitulares, ou seja, localizadas nas igrejas. Começaram a aparecer por volta do século IX e, como em todo capítulo existia um professor e seus alunos, o livro era claramente indispensável ao ensino. Devemos citar as das catedrais de Lyon, Reims, Clermont, Rouen e a de Chartres, que ainda existe.

Saindo do Ocidente e indo em direção ao Oriente, mais precisamente Bizâncio, iremos nos deparar com bibliotecas também mantidas por monges, mas com maior acesso aos profanos. Parece que os bizantinos tinham um maior apreço pelas obras clássicas, consideradas pagãs no Ocidente, e dedicavam-se à sua reprodução e preservação. Os imperadores orientais também empregavam copistas, que eram responsáveis por multiplicar obras de mais de uma biblioteca. Os mais importantes conventos bizantinos foram o Studiom e o claustro de Santa Catarina.

De acordo com a clássica divisão de Wilson Martins, a Idade Média conheceu três tipos de bibliotecas: as monacais, já faladas, as particulares e as universitárias.

É também em Constantinopla que encontramos as mais imponentes bibliotecas particulares, ou seja, mantidas por imperadores e grandes senhores. Constantino (272-337) construiu a sua na cidade que levava seu nome em 330 e, depois do aumento feito por Teodósio, chegou a ter cem mil volumes. Diz-se que ali estavam as cópias autênticas do Concílio de Niceia. Infelizmente a maior parte foi destruída por um incêndio provocado por Leão Isauriano. Entre as perdas irreparáveis, estão as obras de Homero que, segundo a tradição, foram escritas em letras de ouro. Em Bizâncio, temos outras bibliotecas particulares como a de Eustácio Boilas, com 78 livros em 1059, a de Miguel Ataleiates, com 54 livros vinte anos mais tarde, e a de Teodoro Skaranos, com 14 livros em 1274.

Outro nobre que reuniu um grande acervo na sua época foi Carlos V, da França. Ele possuía um acervo pessoal de mil e duzentos volumes, que foram igualmente incendiados em 1871. Entretanto seus manuscritos formaram os primórdios da atual Biblioteca Nacional de Paris.

Em geral os acervos dos grandes senhores eram constituídos por poucos livros, que eram normalmente transportados em suas viagens e expedições de guerra, caracterizando-se como parte integrante da bagagem ao lado das roupas, por exemplo.

As bibliotecas universitárias surgem, logicamente, com o advento das universidades por volta do século XI. Tal acontecimento é um marco na história do livro, e da sociedade como um todo, porque vai provocar um aumento na procura por manuscritos, assim como o surgimento das “profissões do livro”, que irão aumentar a produção de escritos. Inicialmente elas estavam subordinadas às ordens franciscana e dominicanas, principalmente. Isso se deve ao fato de que as universidades surgiram como extensões das ordens religiosas, portanto estas estavam presentes na sua origem.

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Universidade Sorbonne, França

Durante o século XIII as universidades e os alunos se laicizaram, permitindo o aparecimento dos mais diversos especialistas do livro, como miniaturistas, vendedores de peles e os escribas laicos, que copiaram textos a fim de sanar a crescente demanda por manuscritos. As bibliotecas também se tornaram laicas e foram as que mais se aproximaram do modelo atual, ou seja, com disseminação da informação e acesso amplo.

No livro A palavra escrita, de Wilson Martins, podemos encontrar uma descrição do interior da Universidade Sorbonne medieval, em Paris, feita por Jean Bonnerot em seu La Sorbonne:

Ao longo das paredes, as prateleiras dos livros, que se consultavam em estantes alinhadas no meio da sala. Estas últimas, em número de vinte e oito, acompanhavam-se de cadeiras, assinaladas com as letras do alfabeto. Os livros, na maior parte, têm uma corrente fixada na encadernação, suficientemente longa, entretanto, para permitir seu transporte. À grande sala de consulta, sucede uma outra mais modesta, que serve de depósito. A meia-altura, tal como uma capela, abrem-se trinta e seis janelas, através das quais a luz filtrada anima e colore os retratos dos benfeitores do Colégio […]. Sim, trata-se de um lugar sagrado e augusto, no qual só se entra de beca e boné. Quando a leitura termina, é recomendável refletir e meditar, passeando devagar ao longo da galeria coberta que rodeia a biblioteca. Depois, quando as sombras da noite se adensam, cada um se recolhe à sua casa, visto ser proibido, por prudência, trazer lanternas […] ³

No decorrer do século XV, as universidades tornam-se mais ricas e investem em infraestrutura. No final do mesmo século, diz-se que todas as grandes contavam com imponentes bibliotecas. Na França, Orléans possuía uma biblioteca jurídica, Paris uma biblioteca médica, Caen e Angers contratam bibliotecários. Na Inglaterra foram criadas as famosas universidades de Cambridge, em 1444, e Oxford.

Durante a Renascença, as bibliotecas adquirem sua atual configuração, que ainda iria sofrer mudanças até a eclosão da Revolução Francesa. Nesse período, como dito antes, surge também a figura do bibliotecário, que agora também “renasce” diante de uma necessidade de livros e torna-se um agente da informação e não um simples guarda.

Notas

1. CRIPPA, 2004, p. 52.

2. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 18.

3. BONNEROT, 1927, p. 5-6, apud MARTINS, 1996, p. 90.

Referências

BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros. Ediouro: Rio de Janeiro, 2004.

BASTOS, Gustavo Grandini. Bibliotecas. Linguasagem, n. 17, 2011. Disponível em: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao17/art_bastos.php. Acesso em: 19 mar. 2016.

CRIPPA, Giulia. Um bibliotecário em sua biblioteca. Memorandum, 7, p. 47-57, 2004. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/artigo04.pdf. Acesso em: 16 mar. 2016.

MARTINS, Wilson. A palavra escrita. 2 ed. São Paulo: Ática, 1996.

MILANESI, Luiz. O que é biblioteca. 3 ed. Brasiliense: São Paulo, 1985.

ORTEGA Y GASSET, José. Missão do bibliotecário. Briquet de Lemos: Brasília: DF, 2006.

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